quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Entrevista com um alienígena


A psilocina, substância em que a psilocibina se transforma assim que entra em nosso metabolismo, é 4-hidroxe dimetiltriptamina. Trata-se do único indol com quatro substituições em toda a natureza orgânica. Pensem um pouco nisso. É o único indol que se conhece na Terra com quatro substituições. Acontece que a psilocibina é a substância alucinógena que ocorre em cerca de oitenta espécies de cogumelos, a maioria das quais é nativa do Novo Mundo. A psilocibina tem uma característica única que nos diz: ‘Sou artificial; vim do espaço.’ Sugeri que se tratava de um gene – um gene artificial – transmitido talvez por um vírus espacial ou algo que foi trazido artificialmente para este planeta, e que esse vírus insinuou-se na constituição genética desses cogumelos.” – Terence McKenna
 
EM VEZ DA TOTAL ESTRANHEZA, A  curiosa sensação de déjà vu.
   – Não o conheço de algum lugar?
   Ao que me respondeu:
   – É provável. Estou neste planeta já faz um bocado de tempo. Mas você também não me é estranho.
   Olhou-me no fundo dos olhos, por dentro dos ossos, através da alma, e disse:
   – Você era um macaco engraçado...
   Tentei manter o olhar mas não resisti por muito tempo.
   – Quer dizer que você é extraterrestre? – perguntei por fim.
   – E quem não é?
   Foi a minha vez de sorrir.
   – Mas não é a isso que me refiro. Dizem que você de fato veio de fora. E que não faz muito tempo.
   – Em termos geológicos, foi realmente um piscar de olhos.
  Ergui uma sobrancelha como para dizer que não estava satisfeito com a resposta.
   – Tudo bem – disse por fim. – Sou um alienígena em seu planeta. É tudo o que quer saber?
   – Claro que não. Diga-me, como fez para atravessar o espaço cósmico?
   – Da única maneira possível: com tempo. Muito tempo. Para você ter uma idéia, embora eu esteja na Terra já há vários milhões de anos, isto não representa sequer uma ínfima fração do tempo que levei para chegar até aqui.
   – Você não me parece alienígena.
   De fato, à primeira vista, o jovem com quem eu conversava parecia uma criatura extremamente comum. Era moreno, cor de jambo maduro, os olhos amendoados e o nariz adunco característico de todo nativo-americano. Tinha mãos calejadas de camponês, unhas ainda sujas de terra. Trajava um poncho encardido e andava de pés no chão.
   – Compreendo. Você esperava um baixinho verde e enrugado, com dedos enormes com lâmpadas fluorescentes nas extremidades, não é mesmo?
   E, voltando-se para mim com o indicador esticado, gemeu:
   – E.T.  phone home!
   Ri-me da piada mas o dedo de fato brilhou durante alguns segundos – uma luz esverdeada, como a dos vaga-lumes – de modo que logo me lembrei com quem estava falando e recuperei o tom profissional.
   – De onde mesmo você disse que vinha?
   – Eu não disse.
   – E de onde veio, então?
   Ele me olhou com serenidade e respondeu: 
   – A pergunta não está bem formulada. O que é compreensível. Temos aqui um problema semântico incontornável. Um paradoxo. Fosse num livro, o autor certamente seria obrigado a acrescentar uma gigantesca nota de pé de página à essa altura do diálogo. O problema é que a nota teria que ser do tamanho de uma enciclopédia, o que inviabilizaria a obra...
   – Vamos lá. Em resumo, o que diria esse gigantesco pé de página?
   – Que a frase “de onde você veio” é uma pergunta mal formulada, incompleta e limitada por que foi feita numa determinada dimensão, num determinado planeta, por um determinado organismo de base carbono que ainda não sabe muito bem o que está acontecendo à sua volta.
   Mirei-o com desagrado.
  – Mas, apenas para satisfazer esta sua obsessão espaço-temporal, posso lhe dizer que o meu lugar de origem, o planeta onde há muitos e muitos aeons comecei a minha longa viagem, fica numa galáxia muito distante, há muitos milhões de anos luz daqui...
   – Outra galáxia? Meu Deus!
   – ...e que tal informação é tão inútil quanto dizer que brotou uma verruga enorme nas costas de uma égua de Dom Soares hoje cedo pela manhã.
   E acrescentou, zombeteiro:
   – Feia a verruga, precisa só ver.
   Voltei a sorrir. 
   – E o que o fez sair de seu planeta de origem e empreender viagem tão longa?
   Neste momento, ele desapareceu diante de meus olhos, tão misteriosamente quanto aparecera. Mas ainda pude ouvi-lo dizer:
   – Olhe e veja.
   Obedeci. Ou tentei obedecer.
   A princípio, ofuscado pela luz da fogueira, nada vi além do breu da noite e, mais ao longe, a fraca luz do lampião do acampamento. Logo a seguir, ouvi o ruído de um zíper sendo aberto e vi alguém projetar meio corpo para fora de uma das tendas.
   Sofia, a moça que cuidava das medições radiocarbônicas naquela escavação, acenou, me chamando para que eu me juntasse a ela. Parecia tentador e acenei de volta, indicando que já estava a caminho. Ela chamou novamente mas, depois de algum tempo de espera, fez um gesto debochado, como se quisesse dizer que eu era um caso perdido. Em seguida, apagou o lampião e voltou a entrar na barraca.
   – Concentre-se – disse o extraterrestre.
   Novamente corri os olhos pelo breu ao redor. Nada ocorria. A fogueira hipnótica e obliterante me estava roubando o melhor da festa. Daí que apaguei a fogueira, deitei-me de costas sobre o chão de terra e olhei para o céu muito estrelado da floresta guatemalteca. 
   Estrelas. Estrelas. Estrelas. Miríades de estrelas resplandecentes.
   Foi quando voltei a ouvir a voz:
   – Não sou um ser vivo. Não sou um indivíduo. Mas também não sou um deus, nem uma máquina, tampouco um daqueles extraterrestres invasores de corpos que povoam a imaginação dos seres humanos modernos. Digamos que, em um primeiro momento, fui um tipo de vírus.
   Uma estrela cadente atravessou de forma espetacular a densa atmosfera equatoriana. Uma gota de suor escorreu-me pela testa até atingir minha sobrancelha.
   – Não um vírus do modo como vocês entendem um vírus e sim um vírus pré-programado, altamente sofisticado, um engenho de uma cultura que lidava com algo que, de um modo muito grosseiro, poderíamos chamar de bioeletrônica.
   E ao notar o meu olhar subitamente assustado, acrescentou:
   – Hoje já não sou mais um vírus, embora tenha estado bem ativo na Terra há alguns bilhões de anos.
   – Fazendo o quê?
   – Procurando espécimes para infectar.
   Não pude conter a ironia:
   – Como uma maldita gripe?
   – Isso. Como uma maldita gripe.
   – E para quê?
   – A minha primeira missão aqui, já há muito realizada, foi a de infectar e, deste modo, produzir certas alterações bioquímicas em algumas espécies primitivas de sua flora nativa. Naquele tempo, ainda não havia sombra de vida inteligente sobre a face da Terra, mas eu era paciente e aproveitei o tempo livre aperfeiçoando o genes dessas espécies vegetais que escolhi como hospedeiras.
   – E que espécies eram essas? 
   – Inúmeras, a maior parte extinta antes do advento da humanidade. Das espécies que restaram, as mais conhecidas atualmente são certos tipos de fungos, cactos, heras e cipós, estes últimos também perto da extinção.
   E acrescentou:
   – Uma curiosidade para quem gosta de irrelevâncias: por uma incrível coincidência, muitas das espécies de fungos que infectei com sucesso também eram extraterrestres e estavam aqui havia muito mais tempo do que eu. Ao menos, foi o que me disseram, e não vejo porque duvidar deles.
   Recusava-me a acreditar no que ouvia.
  – Imagino que você tenha esperado muito até o surgimento do Homem.
   – Ah, sim. Muito mesmo. No meio tempo, porém, tive contatos interessantíssimos com outras espécies, hoje infelizmente extintas, sob certos aspectos até mais inteligentes do que vocês. Os neandertalenses, por exemplo, eram criaturas com um imenso potencial evolutivo.
   – O que realmente aconteceu com eles?
   – Foram literalmente devorados por vocês, humanos.
   – Recapitulando: então você chegou a este mundo como um vírus extraterrestre com a missão de alterar...
   – Aperfeiçoar. 
   – ...alterar o genes de algumas espécies vegetais nativas enquanto esperava o advento de formas de vida mais sofisticadas. Para quê? Pretendia migrar para os corpos dessas novas formas de vida quando fosse oportuno?
   Ele gargalhou gostosamente.
   – De modo algum! Pretendia apenas me comunicar com elas.
   E após uma pausa, concluiu:
   – Porque foi para isso que fui enviado ao espaço.
   – Não compreendo. Aliás, não compreendo como foi possível que você atravessasse as distâncias incalculáveis entre duas galáxias...
   – Três.
   – ...três galáxias, e chegasse aqui ainda capaz de cumprir a sua missão. Como fez, ou o que os seus criadores fizeram para que isso fosse possível?
   – Ora, vamos. Certos vírus são virtualmente imortais. Em estado latente, podem suportar bilhões de anos no frio e no vácuo absoluto. Em realidade, certos vírus conservam-se melhor no espaço do que na superfície de um planeta como a Terra. Se há alguma coisa que pode se dar ao luxo de atravessar as imensidões interplanetárias e chegar ativa no outro lado, essa coisa certamente é um vírus ou, quando muito, um esporo de fungo...
   – Então, é adeus aos discos-voadores!
   – Eram uma ficção muito interessante. Mas jamais teriam dado certo, na prática.
   – E por que não?
   – Porque não há outro maneira de se viajar no espaço cósmico senão tendo muito tempo a perder. 
   “Imagine-se uma criatura inteligente num planeta qualquer, em qualquer parte do universo. Imagine-se tão inteligente quanto desejoso de conhecer outros planetas, outros povos e civilizações, ansioso por compartilhar o seu conhecimento com as demais criaturas do cosmo.
   “Por ser tão inteligente, você nem mesmo tenta construir naves espaciais para realizar os seus intentos por saber de antemão que seriam tentativas fadadas ao fracasso.
   “Num certo momento de otimismo exagerado, lá no começo de sua trajetória, chega a criar máquinas espetaculares que se reproduzem a si mesmas usando as matérias primas encontradas nos planetas e estrelas por onde passam – o que, então, parecia ser uma boa alternativa para atacar o problema das viagens interestelares com mínimas chance de sucesso.
   “Infelizmente, justamente por serem tão inteligentes e tão auto-suficientes, não tardou até que essas naves robotizadas assumissem vontade própria, rebelando-se contra os seus criadores e sumindo universo afora.
   “Definitivamente, a solução não estava na tecnologia. Não naquele tipo de macrotecnologia. Já a genética e a bioeletrônica sinalizavam com alternativas mais plausíveis. De fato, o progresso neste sentido foi bem rápido e, alguns milênios mais tarde, finalmente foi possível criar algo como aquilo que eu fui no momento em que iniciei a minha longa viagem pelo espaço intergaláctico: um grânulo invisível a olho nu, pesando não mais do que um picograma, e contendo milhões de vírus artificiais, geneticamente trabalhados em laboratório. É claro que não fui o único. Assim como eu, foram espalhados bilhões de grânulos semelhantes, a maioria fadada a jamais encontrar terreno fértil para darem seguimento ao programa.
   – Uma coisa ainda me intriga – disse eu. – Por que, uma vez aqui, foi preciso usar vegetais como intermediários neste contato com outras espécies mais evoluídas?
   –  Veja bem: não havia possibilidade de carregar todo o programa no vírus matricial. Se isso fosse necessário, ele deixaria de ter um tamanho e um peso que viabilizasse o projeto. Bastava apenas que esse vírus fosse capaz de alterar uma forma de vida primária de base carbono de modo a faze-la produzir certas substâncias as quais, assimiladas pelo sistema nervoso central de uma criatura superior, a tornariam capaz de decodificar a informação que queríamos transmitir.
   – Nessa eu boiei completamente. Onde estava armazenada toda esta informação?
   – Como vírus, eu nada sabia além de como alterar uma espécie vegetal para que desse início a um programa muito complexo. A natureza se encarregou do resto. Penso ser desnecessário dizer que DNA é informação. Muita informação. Mais informação do que você pode imaginar. Pode-se usar a cadeia do DNA não apenas para guardar as informações que compõe o genoma de uma determinada espécie, como também para registrar informação pura: som, imagem, idéias...
   “Era a única maneira de preservar a imensa experiência cultural da civilização que represento, uma espécie com mais de cem mil anos de história conhecida. Da mesma forma, era o único meio de estabelecer um diálogo produtivo, prolongado e consistente com seres de outros planetas.
   – Tudo bem. Suponho que eu compreenda vagamente o que você diz. Mas ainda não tenho uma idéia muito clara a respeito do que, ou de quem é você. Como falou a princípio, não é um indivíduo, não é um deus, não é uma máquina... Quem é você, afinal de contas?
   – Em seu idioma existe um termo que talvez ajude a definir o que sou: “avatar”. Não no sentido literal da palavra, que quer dizer “reencarnação de um deus” e sim num sentido mais laico, querendo dizer “reencarnação das memórias e, principalmente, das idéias de bilhões e bilhões de indivíduos geniais, desaparecidos aeons antes de eu chegar à Terra...
   – Neste caso, então, não há diálogo – interrompi. – Se estão mortos...
   – Não! – rebateu ele com certa veemência. – Não disse que estão mortos! Eu e outros como eu se encarregam de preservar a memória de sua existência, as imagens de suas cidades, sua música, sua história, seu modo de vida, suas paixões, suas obras de arte, suas vidas particulares... No momento em que estou ativo em seu cérebro, é como se todos aqueles a quem represento voltassem à vida, para compartilhar conhecimentos, idéias, lembranças e sensações muito antigas, dando conta de um modesto capítulo da breve saga da vida no universo.
   Fez uma pausa mas disse a seguir:
   – Para celebrarmos juntos a vitória da consciência contra o tempo; do espírito sobre a matéria.
   Parecia tentador. Extremamente tentador.
   – Muito bem – disse eu, rendendo-me aos argumentos. – E o que tem para me mostrar?
   – Olhe e veja – repetiu.
   Então eu olhei e vi.
____________________
Da coletânea Éden 4 e outras histórias fantásticas, Record, 2001

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom texto sou membro antigo do CM
https://www.facebook.com/julianodencker

Alexandre Raposo disse...

Grato, Juliano! Fico feliz que tenha gostado.

ÍNDIO BRANCO disse...

Li TODAS as obras desse escritor incrível, Alexandre Raposo!!Não vejo a hora do autor publicar outras obras fascinantes!

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